Postagens

Mostrando postagens de 2017

17

17. É o que me diz o círculo vermelho feito à caneta em torno do número, bem no meio da folha do calendário preso à parede. O único número em destaque. Seus colegas de trás, cortados por um "x", como se nada mais valessem. Seus colegas da frente, em aberto, como nada tivessem a dizer. Corro os olhos um pouco acima e vejo o mês: outubro. Levo um susto. Como chegamos em outubro sem que eu me desse conta? Acabo de entrar no bar digerindo a informação. 17 de outubro de 2017. Até ontem estávamos em 2016, felizes pelo avanço de 2015. Calendários e relógios não deveriam ser permitidos em bares. E, por falar nisso, noto as horas. 10h. Da manhã. Terça-feira, horário de verão. O sol derretendo as calotas de gelo das pessoas em São Paulo. Ainda assim, todas continuam me parecendo um pouco frias, ou vai ver sou eu. A sensação é de que passei todo o ano em estado letárgico, sem notar o transcurso de dez meses. Na verdade, houve alguns acontecimentos ao longo do ano. Se eu juntasse cada u

Cena se cria

Rio de Janeiro dos anos 20. 20 do terceiro milênio, não vamos tão longe. Eu já trabalhava com o Sr. Cevite. Sentada à mesa ao lado da sua, eu involuntariamente ouvia todas suas conversas ao telefone, que iam como essa: "Te vi esses dias, vamos marcar um almoço, mas você engordou, hein... vai ter que comer salada." Confesso que vez ou outra eu me via encurralada entre o riso e a indignação. Em momentos mais difíceis, eu o via conter-se ao sentir que se exaltaria, dava uma resposta mais incisiva e, logo, recompunha-se para vestir novamente o manto social, enquadrar-se àquele contexto polido, ainda que com pouco jeito. A verdade é que tratava-se de um autêntico ogro, um ser sem muitos escrúpulos que, feito bicho adestrado, aprendeu a se comportar, pelo menos o mínimo para enganar a um primeiro momento. Certa feita, estávamos em uma roda de café, dessas em que alguns executivos se reúnem para dois dedos de prosa, falar dos projetos e debochar dos outros. Era o momento em

37 horas

Estamos no segundo dia. Do ocorrido faz menos que quarenta e oito horas. Este texto tem o fim como o de vários outros. Não só o fim enquanto objetivo, mas também o fim enquanto final. Vocês verão. Digo que verão porque enquanto transcrevo essas divagações, sinto que lhes transmito muito do que já conhecem de mim. Anos se passam e pessoas são substituídas, mas eu sigo sendo eu. Claro, há profundidades em mim que talvez eu ainda não conheça, mas de todos aqueles aspectos que já saltitaram antes, um por um é mantido. Todos os fragmentos de mim que me formam permanecem aqui. E aí se incluem meus erros. Estes, em forma de feito fora do parametrizado, muitas vezes tiveram um roteiro. Chego a arriscar que costumo sair de casa com esse roteiro pronto. Roteiro do erro. A verdade é que ele só leva esse nome porque traz em si algumas disparidades, mas, se querem saber, o gosto é de vida. Vida pulsante e viva. E nem preciso dizer que erraria novamente, se assim pudesse. Notem que, apesar das seme

Sapos

- Sabe que andei pensando e... bom, cheguei à conclusão de que você é como um livro do Dostoiévski. Parece interessante, cheio de palavras difíceis, se adapta bem ao frio, combina com café, traz aquela faísca de cultura, como se, apenas por estar perto, fosse me tornar, por consequência, também mais interessante. Porém, é chato pra caralho. "Como assim? Tá ficando louca? Dostoiévski! Não fale mais isso perto de ninguém. Dostoiévski, cara" É, certamente não falarei mesmo. Inclusive, na minha estante de casa tem no mínimo uns quatro livros do russo, que guardo há anos. Alguns lidos, outros intocados. O que fazemos quanto à chatice de Dostoiévski? Ignoramos, ora. Na verdade, sequer admitimos para nós mesmos. No fundo, temos em mente que Dostoiévski é muito mais interessante do que jamais poderemos ser e, claro, nos enchemos de culpa por não nos sentirmos envolvidos na trama do autor, tampouco fazer algumas concessões para gostar dele ou, ainda, cair no sono durante a leitura. L

Das Relações Interpessoais Transitórias

Sim. Transitórias. Aquelas que duram pouco e que dispomos de um arcabouço mínimo de conhecimento sobre o indivíduo contraposto (assim os chamarei), além de um tempo ínfimo para traçar nossas impressões valorativas. Tenho pra mim que o imperativo responsável por reger tais interações é o instinto. Passarei, pois, a defender o papel de importância máxima desempenhado por esta engrenagem automática e dotada de pouco reconhecimento. Comecemos do começo. Tem-se que ao primeiro contato visual compartilhado com um indivíduo contraposto é estabelecida uma comunicação rica, porém, de interpretação duvidosa. Duvidosa porque não confiamos em nós mesmos, não vamos por aquilo que nossas entranhas nos fazem sentir, tampouco por aquilo que nosso peito grita. Sempre atribuímos tais sensações às baboseiras de nossa mente e concluímos com nosso autodiagnóstico de louco. Contudo, se depositássemos crédito em nós mesmos e seguíssemos nossa intuição, acertaríamos em nossas análises muito mais do q

vida doce

shopping lotado coisa de cidade grande de pé na porta da confeitaria mais cheirosa do andar eu o espero pagar pelo bolo de nozes não temos mais pressa gosto da idade que alcançamos um riso bobo me percorre o rosto bem quando ele me olha e também começa a rir para mim somos dois bobos bobos alegres na fila do bolo de nozes

Besteira de gente grande

Noite de domingo. Sonolenta, eu ouvia sua voz ditando cada palavra daqueles textos que escreveu, enquanto eu mesma os lia antes de dormir. Sua voz doce tinha gosto dos seus lábios, que tinham gosto dos seus beijos, que, por sua vez, tinham gosto de amor. Amor que tinha cor. Cor de rosa, lilás, branco... qual era a cor daquele meu vestido? Não sei se coral ou vermelho, mas era cor que só se usa quando se ama e é amado. Ninguém transborda aquela felicidade colorida sem estar amando. Normalmente usa-se preto, no máximo cinza, bem se sabe. O amor era tão simples que parecia ser algo que se compra naquele velho mercadinho da esquina da casa dos seus avós. Mercadinho da família Silva, três irmãos e uma irmã, com uma cambada de moleque. Conhecem a gente pelo nome. Coisa que só se tem no interior. Podia-se entrar, pegar sua bala preferida e pendurar na conta, que nem nossa era. Nosso amor também não tinha conta em nosso nome. Nenhum acerto a se fazer, pois já estava tudo certo desde o primeir

Pouco, muito pouco, importa

Tudo porque eu não conhecia Jung. Ora, e daí que eu não conhecia Jung? Eu poderia muito bem conhecer. Conheci outros. Conheço outros. Conhecerei outros. E agora conheço Jung também. Eu li Freud quando ainda estava no colégio, lá pelos 15 anos de idade. E Plotino? Duvido que manje alguma coisa de Plotino, mística ou qualquer outra merda dessas que antes eu achava o máximo e hoje não passa de história pra boi dormir, pelo menos pra mim. Também conheci Descartes muito nova e, desde então, cogito, ergo sum. Sinto a náusea que Sartre fala muito antes de ter lido suas obras. Rejeitei as ideias de Kant e Spinoza. Me apaixonei por Hume, mas me tornei cética muito antes de ter conhecido sua teoria, até porque, ele tinha razão, todo conhecimento útil sobre o mundo vem através do que experimentamos pelos sentidos. Tá vendo como tanto faz tudo isso? Tanto faz quem você leu ou quem você ainda tem pra ler.   Como amante da filosofia, sempre medi as pessoas pelo número de filósofos que elas co

Contornos

Dirigia sob os leves raios de sol da manhã, no som " Should have knwon better ", um chapéu de palha, óculos escuros e roupas largas. Sem pressa, seguia pela via da direita. De vidros abertos, deixava o vento tocar seu rosto, enquanto inspirava e expirava com uma calma que experimentava de forma bem própria. Se não precisasse se atentar à estrada, fecharia os olhos para sentir melhor aquele momento. No banco de trás, algo com flores e essências, frutas e legumes com aspecto de recém colhidos de alguma horta cultivada por mãos caprichosas. O dia tinha cheiro de domingo, mas não qualquer domingo, não aquele domingo de quem vive a segunda-feira com pesar. Era um domingo de paz. A idade trouxe, além dos cabelos brancos, a sabedoria, ensinou a entender melhor a vida e aceitar os seus contornos. Pouco mudara, mas muito amadurecera. Não podia pedir por mais. Entendia, finalmente, que o amor é mesmo misterioso e, quando é vivido no presente, não é possível classificá-lo, dar nome,