Das Relações Interpessoais Transitórias

Sim. Transitórias. Aquelas que duram pouco e que dispomos de um arcabouço mínimo de conhecimento sobre o indivíduo contraposto (assim os chamarei), além de um tempo ínfimo para traçar nossas impressões valorativas.
Tenho pra mim que o imperativo responsável por reger tais interações é o instinto. Passarei, pois, a defender o papel de importância máxima desempenhado por esta engrenagem automática e dotada de pouco reconhecimento.
Comecemos do começo.
Tem-se que ao primeiro contato visual compartilhado com um indivíduo contraposto é estabelecida uma comunicação rica, porém, de interpretação duvidosa. Duvidosa porque não confiamos em nós mesmos, não vamos por aquilo que nossas entranhas nos fazem sentir, tampouco por aquilo que nosso peito grita. Sempre atribuímos tais sensações às baboseiras de nossa mente e concluímos com nosso autodiagnóstico de louco.
Contudo, se depositássemos crédito em nós mesmos e seguíssemos nossa intuição, acertaríamos em nossas análises muito mais do que somos capazes de acertar com frios estudos.
Pois bem. Voltemos ao ponto. Comunicações estabelecidas pelo primeiro contato visual.
Sabemos que o cômputo do tempo se dá por meio de nosso referencial básico compreendido pela limitação humana, portanto, não somos capazes de avaliar com minúcias o ocorrido em uma fração de segundos. Não pela impossibilidade material em si, mas pelo fluxo constante dos acontecimentos. Ao fim de uma fração de segundos, outra cadeia de atos se inicia e, com ela, novos reflexos. Logo, nosso consciente não é capaz de aferir tudo que ali se deu. E é aí que entra nosso subconsciente, responsável por guardar tudinho sabe Freud onde e, vez ou outra, mandar para nossas ações respostas instintuais.
Uma premissa que deve ser adotada para prossecução do estudo é que estas respostas são extremamente alternáveis, podendo se manifestar dentro de um amplo espectro de variações da aceitação ao repúdio.
Todavia, a fim de afunilar nosso raciocínio para alcançarmos nosso objetivo final, passaremos a dar enfoque nas respostas que se concentram no campo da aceitação.
Sendo assim, tem-se que indivíduo e indivíduo contraposto  percorrem em 0,8 segundo a linha intangível do contato visual, firmando no subconsciente um catálogo de impressões cuja parcela mínima será, com sorte, alcançada pelo consciente, em estado defasado e apenas certo tempo depois. 
Nesta linha, enviamos e recebemos mensagens, firmando uma real conversação, em que o mundo exterior torna-se irrelevante, junto das pessoas ao redor, que passam a ser meros figurantes na cena em que já viramos protagonistas. O segredo e, via de regra, o perigo envolvidos na comunicação a tornam ainda mais valiosa, as partes presentes sabem que estão falando aos auspícios dos demais, sem que ninguém note o que ali está acontecendo. O disfarce é a chave final do ato e, felizes, as partes recompõem a expressão para acoitar o brilho que já transcende as próprias dimensões. 
Superada a fase prévia compreendida no intervalo de tempo em que se consuma o contato visual, teríamos um segundo quadro, também breve, porém dotado de uma riqueza perceptível com maior facilidade por nosso consciente. 
Trata-se do primeiro momento em que somos tomados pela desconfiança de que há uma comunicação diferenciada estabelecida com o indivíduo contraposto, não se tratando tão somente de impulsos enviados pelo que, a priori, entendemos ser atribuível à nossa loucura.
Como já se é possível sugerir a esta altura, cuida esta fase do primeiro acidente de atrito. Este poderá ser provocado pelo acaso ou por uma das partes. Uma ponderação cabível é que nesta fase não se admite que o acidente de atrito seja por concordância de ambas as partes, do contrário, tratar-se-ia do terceiro quadro de estudo, ao qual, nem sequer pretendo chegar, pois já me estendo para além da conta nestas linhas que certamente já não são acompanhadas por mais nenhum leitor, bem sei que vocês têm mais o que fazer do que embebedar-se da estupidez dos meus textos.
Pois bem. Voltemos. Acidente de atrito que, tal como indicado pelo nome, reveste-se de acidentalidade, habitando o mundo do caos aleatório.
Tem-se que neste contato físico compartilhado com o indivíduo contraposto, o efeito é como o de uma explosão. Ousaria defender a química, a física e a biologia envolvida em tal comando, mas minha capacidade intelectiva passa tão longe destas searas que não posso assim me atrever, sob o risco de colocar em perigo o aproveitamento da leitura dos nobres perseverantes que seguem até este momento comigo, chamados pelo vulgo de ninguém.
Assim, tentarei descrever a partir de uma perspectiva leiga do corpo e mente humana, limitando às sensações que assolam às partes e que são transformadas em impulsos, regidos pelo instinto, imperativo que defendi desde o princípio como máxima nas relações interpessoais transitórias. Nesta fase as reações ainda mantêm uma parcela de dúvida quanto à sua veracidade ou correspondência pelo indivíduo contraposto e, assim, o acidente de atrito pode vir acompanhado de um pedido de desculpas, seguindo-se de um leve sorriso de canto de boca ou, ainda, pode vir pela audácia de uma das partes que, interpela a outra revestindo o ato com o mais deslavado manto da despretensiosidade.
Devo ressaltar a magicalidade e mística que compõem este complexo, comparáveis a, como em um filme ouvi dizer "pérolas rolando escada abaixo". É tão leve e sutil que, paradoxalmente, acende cada canto do nosso corpo como se tivéssemos levado um golpe a la Pulp Fiction no peito e, de repente, a vida estivesse ali, como se nunca houvesse estado antes, como se estivéssemos antes no modo avião e, com o pouso, fôssemos religados.
Depois deste divisor de águas em qualquer relação interpessoal transitória, nada será o mesmo.
Portanto, para fechar este ensaio, que buscou defender o instinto como motor das interações humanas, cabe apenas desejar aos nobres leitores que acreditem naquelas faíscas provocadas por um indivíduo contraposto, pois elas, meus caros, são parte de uma sequência complexa de sensações que se iniciaram na primeira fração de segundos em que se deu o primeiro contato visual e são extremamente raras na forma genuína e desprogramada, tal como somente o instinto pode propiciar.

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