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Mostrando postagens de 2016

Os ovos

Segunda-feira, meio dia. O sol estancava-se feito sangue no céu, enquanto o ar seco mesclava as cores do dia amarelado com a sujeira ramerrame do centro. Na escadaria da igreja principal, os mendigos se esticavam após o almoço de migalhas, uns rindo, outros agonizando. Verdadeira fotografia do cotidiano em seu mais genuíno aspecto. Desviava dos vendedores ambulantes, que se jogavam aos pedestres, tentando lhes empurrar qualquer bugiganga. Passou por uma senhora, de uns setenta e pouco anos, que lhe deu um sorriso e uma piscadela de olhos. Quis rir em retribuição à pobre velha, mas suas feições entristecidas não conseguiram demonstrar nenhuma reação. Sentiu-se mal pelo descaso que involuntariamente transmitiu.  Era de se culpar por qualquer besteira e naqueles últimos tempos vinha se culpando por tudo, desde a planta que deixou morrer na sua casa por esquecer de regar, até o jogo que não assistiu com a camisa de sempre e seu time perdeu. Nunca acreditara em sorte, mas se fosse para

Quatro

Eram quatro. Quatro estranhos entre quatro paredes. Quatro realidades distintas postas a se confrontar. Quatro interesses diversos que se encontravam em dimensões comuns, porém cruzadas, proibidas e encobertas. Já marcavam quase 8h da manhã e as primeiras impressões do domingo iam chegando de mansinho. O céu ia se abrindo num cinza frio, invadindo a sala de luz pelas janelas completamente abertas, enquanto as cortinas se balançavam com o vento. Encaravam uns aos outros e já não tinham tanto o que falar. Os defeitos de cada um haviam ficado expostos nas últimas horas, quebrando todo o frisson que a perfeição do desconhecido causa. Há cerca de uma hora antes, olhava pela janela e notava uma fotografia da cidade, marcada pelos aspectos daquele lugar e do momento, algo completamente novo. Pensava nada ter a temer, era justo que se lhe aproveitasse a vida como bem entendesse, livrando-se, posteriormente, de qualquer consequência ou remorso, coisa que não era hora de se preocupar. Além

Em síntese o que sempre me pareceu tão claro

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Sofia

Sentia pisar em nuvens. Seu caminhar nunca foi tão leve. O vento soprava a seu favor, a estação era sua preferida. Primavera. O céu estava bem azul, mas de alguma forma, o ar tinha um aspecto cor-de-rosa, talvez pelas flores de cerejeira que se espalhavam pelo percurso. Lembrou-se de Titãs, "há flores em tudo que eu vejo", e seguiu cantarolando enquanto esbanjava despretensioso charme em seus óculos escuros. Seus passos confiantes inspiravam quem a visse. Houve uma garota que por ela passou e tentou notar todos seus detalhes, talvez numa intenção de entender um pouco sobre felicidade, mas felicidade não se explica e, muito menos, inspiração. Dizem que inspiração sequer existe, não passando de um punhado de ideias desconexas que se explodem num dia de tédio, causando algumas conexões. Mas aquele não era um dia de tédio. Talvez a inspiração seja, então, um reflexo da felicidade quando alcança um patamar de independência. Quando, a despeito de qualquer infortúnio em constância,

Acasos do amor

Brincávamos de fazer amor à sombra das árvores. Víamos as folhas serem levadas pelo vento, de um lado para o outro, e falávamos sobre aquela dança. Com a ponta dos dedos indicávamos o percurso que faziam. Lá se vão e eis que para aqui sempre se volvem. Dizíamos que aquele era um reflexo do nosso caminho. Deixamos o acaso nos levar, assim como as folhas deixam o vento - comparávamos.  Seus olhos me fitavam intensamente, com certo brilho e ternura, enquanto minhas pupilas se dilatavam, em verdadeira resposta química à paixão.  - Que é o amor senão isso que temos? - O amor é saber que isso não é algo que temos. - O que quer dizer com isso? - indagou-me. - Ora, o amor é algo que nunca se tem, impróprio pra esse verbo possessivo. O amor é a plena ciência de que isso é agora e, ainda assim, não tememos. - Mas você me ama? - Claro! Tal como nunca me amará de volta. - Por que pensa assim? - Porque sei o quão de mim você não conhece e, desde já, peço desculpas. - Que históri

Preia-mar

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À deriva Como se não houvesse nada abaixo de meus pés Ou como se tudo que há pudesse me engolir sem dor Sinto o consumo do espaço em minhas dimensões Meu corpo em um equilíbrio infantil O vento forte que me derrubaria sem esforço Meus olhos se fecham consentindo Em um salto permaneço intacta Vejo que posso flutuar A virada ponta-cabeça repentina Eu sou a ponte sobre as águas turbulentas Deito-me para a maré passar.