Postagens

Mostrando postagens de 2015

Buraco

O dia seguia ameno, as cores frias mesclavam-se ao ar denso, deixando a sensação de estarmos vivendo mais uma tarde que não seria lembrada e, se eventualmente fosse, faríamos questão de esquecê-la novamente. Os caminhos estavam bem delineados no trilho, seguíamos feito máquinas bem programadas, personificando aquelas que a Revolução Industrial nos deixou de herança. Normal. Acostumamos a usar coleiras e já não nos sentíamos revoltados pelo puxão que, vez ou outra, poderia ser mais forte.  O descaso se estampava em nossas caras que, cansadas pelo desgosto, já não manifestavam muitas contradições. Sabíamos que os reis e rainhas do baralho eram como nossos donos – sim, fomos feitos números ao longo dos séculos sem que nos déssemos conta – e por isso, poderiam nos conduzir como bem quisessem, do contrário, padeceríamos às mazelas mundanas. De toda a multidão, às vezes um ou outro se destacava. Os curingas. E logo hão de pensar que pelo trabalho bem prestado, o que não poderia ser ma

Paródia reflexiva - Camões às avessas

A raiva é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é a mesma raiva? 

Caótica quietude

Torpor na volta para a casa. Seus sentidos estavam dopados de apatia, enquanto o ônibus se balançava barulhento. O queixo apoiado sobre as mãos demonstrava não só o descaso pelo momento, como a frustração do dia. Era o fim de uma segunda-feira tal como outra qualquer. Dia de se retomar a rotina como se ela nunca houvesse sido tocada. Ignorar que a adrenalina experimentada se fora junto das primeiras horas do domingo e se conformar com o marasmo e a monotonia contundente. O trânsito intenso não era capaz de lhe fazer mexer um músculo sequer da face, suas expressões estavam estagnadas em neutralidade. Tudo que pensava era em como aquela euforia havia ido embora, sem deixar nem um caminho para ser seguida de volta, intocável, a depender exclusivamente do acaso.  Que os dias já lhe propiciaram boas surpresas, era verdade. Mas não havia como acreditar em coincidências extremas em repetição. Já fora suficientemente espantoso que uma vez houvesse acontecido. Imagine duas. Diferenteme

Oceans and streams

My head is far far away from here. I feel like floating. I always feel like that once in a while. Like I'm laying on some water's surface, just going by the natural force, since I can't fight it back. I have no hunger, no hurry, no urges. To make it all easier I close my eyes. When I open them up, I see how far I've got. Like time has passed and I couldn't notice. Truth is... I don't really care. No matter how lost I may seem, I'll always find my way back. As a matter of fact, I usually find a way to something even better. 

Bem-vinda consciência oscilante

Rememorava traços que lhe voltavam pouco a pouco. Contra cada fragmento, relutava. Não era possível que tudo isto houvesse acontecido. Sobretudo neste curto espaço de tempo. - Qual o sentido da espera?, dizia.  - Todo, é claro.  - Se a vida é feita de segundos, por que contam em anos? Se as pessoas são tão insubstituíveis, por que existem bilhões? Se somos um só, por que sinto que já fui várias?  - Irrelevante, por óbvio. Cada passo traz o peso que merece e cada olhar, o reflexo que ignoramos para encobrir qualquer desgosto. De todos, apenas um. Mas num agora muito turvo para se dizer até quando se fará permanecer. Em verdade, todo agora é assim. Os fatos são como fotografias a serem reveladas, bem se sabe.  Enquanto me ouvia, torcia o nariz. Os sentidos eram reinterpretados como queria, o que tentei evitar: "Não era você que acreditava que os atos da vida se concatenavam?", indaguei.  - Sim, mas temo tê-los desconcatenado por minha conta.  - Acalme-se. Se para

Epifania

Numa decisão robusta, largou tudo que tinha nas mãos e reconheceu a desnecessidade daquilo que vinha segurando. Subitamente havia ficado tão claro. Os questionamentos que tanto lhe rebatiam, já lhe pareciam bestas olhados de agora. Como pôde por tanto tempo se arrastar naquela disforia? Lembrava de sua mãe repetindo, "isso é querer acreditar em papai noel, minha filha". Um riso lhe percorreu sutilmente a boca. Logo sua mãe lhe alertando da absurdez de se crer em contos surreais nesta altura da vida. O tempo já não estava mais para as fábulas. Era como se houvesse sido socada na cara pelos pulsos da realidade, que toma tamanho e forma para recobrar a consciência daqueles que flutuam para muito além do chão. O cuidado que o tema exigia já se perdia e, lentamente, tornava-se chacota, da qual ela mesma costumava rir. E claro, antes mesmo rir do que chorar. As expectativas viraram pó e, quanto a isso, conformou-se. Difícil mesmo era jogar o pó fora, sacodir o tapete da vida pela j

Lenta queda da vida

Quando me mudei, pensei que a cidade iria encher minha cabeça com tanta novidade que eu mal conseguiria colocar em textos todas as ideias. Mas não. Dois anos aqui e esses são os primeiros parágrafos mal programados e sem muito conteúdo que me saem. Talvez devido ao marasmo que os dias se tornaram, não sei. Especulo que sim. Mas há quem entenda que toda especulação é fadada a falhar. Pode ser. Naquela noite preferi dormir, é verdade. E naquela outra, acabei me embebedando novamente. Fato é que a liberdade está me deixando confuso. Tanto mundo pra explorar sozinho. Tanto tempo pra desfrutar. Tanta vida só minha e de mais ninguém. Parece um muito de tanto que vou deixando pra usar depois, já que há essa abundância. Ocorre que o que abunda prejudica, ao contrário do que alguns juízes que conheci diziam. Pessoas gostam do pro... Como é mesmo aquela palavra? Algo no sentido de estender o texto. Pensei em prolapso, mas vi que não, não mesmo. Minha cabeça tem ficado confusa, digitei &

Memórias

Bullshit. A primeira palavra que me vem à mente quando penso no ser humano. Risos. Engraçados nas próprias medidas. Uns transparecem a comédia. Outros a escondem dando margem à descoberta tardia. Triste, no fim das contas. Todos pequenos, mínimos como podem ser. Atrofiados sem saber. Presos aos passos dados. Ninguém se lembra diariamente da própria limitação. Dão espaço à vida ilusória quando se esquecem que os caminhos percorridos criam vínculos que pra sempre estarão lá. Vivos ou mortos. Por vezes busquei inspiração nas melhores extensões vividas, não me trazendo nada além da folha em branco. É o ódio vestido de resiliência que faz o coração falar. A vida segue. Não restam vítimas, a não ser que assim se coloquem e optem por permanecer. Quem não gosta da fantasia inventada? Da mentira bem contada? Todos revesam lugar na plateia e no palco. Ora apontam, ora são apontados. Não cabe sentimentalização dos ressentidos. Simplesmente não há espaço. É drama pra se suprimir. Na contagem do