Cena se cria

Rio de Janeiro dos anos 20. 20 do terceiro milênio, não vamos tão longe. Eu já trabalhava com o Sr. Cevite. Sentada à mesa ao lado da sua, eu involuntariamente ouvia todas suas conversas ao telefone, que iam como essa: "Te vi esses dias, vamos marcar um almoço, mas você engordou, hein... vai ter que comer salada."
Confesso que vez ou outra eu me via encurralada entre o riso e a indignação.
Em momentos mais difíceis, eu o via conter-se ao sentir que se exaltaria, dava uma resposta mais incisiva e, logo, recompunha-se para vestir novamente o manto social, enquadrar-se àquele contexto polido, ainda que com pouco jeito.
A verdade é que tratava-se de um autêntico ogro, um ser sem muitos escrúpulos que, feito bicho adestrado, aprendeu a se comportar, pelo menos o mínimo para enganar a um primeiro momento.
Certa feita, estávamos em uma roda de café, dessas em que alguns executivos se reúnem para dois dedos de prosa, falar dos projetos e debochar dos outros. Era o momento em que aproveitávamos para interagir com alguns superiores, que ali igualavam-se momentaneamente ao resto e mortalizavam-se, como dizíamos, pois desciam todos os degraus da pompa para juntarem-se aos demais, fosse na chacota do colega ou no seco comentário do tempo ruim, da chuva que estava por vir ou do sol que acabava de se estancar.
Neste dia, um figurão, ocupante de uma das maiores posições na pirâmide, estava presente. Quando isso ocorre, todos revestem os gestos de três camadas de cuidado, não só pelo medo de transparecer alguma gafe, como também pela ânsia de demonstrar algum requinte. Mas ele... ele não. Ele parecia soltar ainda mais as estribeiras, relaxava-se como se estivesse em casa. Colocava-se à posição de amigo íntimo do granfino e ousava nas mais extremas piadas e nos mais desagradáveis sexismos. Falávamos ali sobre um projeto a ser implementado naquela semana e, exatamente neste contexto, ele contou essa ao tal figurão: "Fiz a reunião com a Kelly, você conhece ela, né? Era sexta-feira, ela estava de calça jeans, daquele jeito."
Engraçado ver a reação das pessoas. Lembro das exatas palavras que um amigo usou, quando falávamos sobre o mal estar que ele causava: "Já pensou que ficamos mais apreensivos do que ele com essa situação? A ignorância alheia perturba mais os outros do que o próprio ignorante, afinal, ele é ignorante, pra ele tá tudo certo." Genial.
Como o governo havia deixado de lado as minorias, regredido décadas nas políticas de inclusão social e declarado abertamente "Nós Primeiro", parecia estar liberado o escrotismo no país. Brincávamos entre nós: "Voltem a fingir." Sabíamos que a misoginia e o preconceito nunca havia deixado de existir, mas no último par de anos já nem se fingia mais.
Logo, somando seus maus modos naturais à consciência coletiva estragada pela mentalidade política dominante, o resultado não poderia ser outro a não ser horrores escancarados a todos os lados.
Sr. Cevite costumava me aconselhar, via-se como um responsável por mim. Por diversas vezes, falamos durante horas em tom de pai que aconselha filha enquanto aponta seus erros.
Engraçado é que, de fato, seu olhar a mim sempre pareceu de pai. Lembro-me de apenas uma vez em que encarou meu decote, mas pude notar ter sido involuntário, ficando nítido seu constrangimento ao perceber que eu vi. Digo engraçado porque, em meio a todo seu mau jeito, notadamente com as mulheres, a mim o Sr. Cevite sempre soube respeitar. Agora que não trabalhamos mais juntos e já não o vejo há um tempo, chego até a sentir uma fração de empatia pelo velho.
Fazer o quê... ainda assim precisei pedir sua cabeça.
Reclamar dos meus atrasos? Poupe-me.

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