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Mostrando postagens de 2014

Esquivas

Se muito falei, agora pouco me resta. Sei daquilo que não conheço. Memórias nunca tive. Esperança, quiçá. Talvez só me reste mesmo o presente, numa agonia de estar preso a um nome que não lhe faz jus. Presente mesmo seria ter o passado e o futuro. Fazer da vida alguma história. Mas, nada. Nada cabe ao que na mente desmancha o passo dado, nem tampouco ao que em pensamento se esquiva de olhar adiante e se posicionar, seja qual for a direção.

Café Frio

E eu continuava a observá-la. Sempre nos mesmos horários. Era incrível sua pontualidade. Houve um dia que me atrasei por cinco minutos para alcançar a janela e, quando cheguei, ela já não mais estava lá desfilando graciosa. Hesitei por algum tempo, pensando que ainda pudesse passar, mas era tarde demais. Às sete horas, nem um minuto a mais, nem um a menos, e lá se ia minha bela junto com o frescor da manhã em sentido leste. Voltava ao entardecer, retomando, imagino, o caminho de casa, sentido oeste. Eu me culpava, me castigava e chegava adiantado no dia seguinte se deixasse de vê-la um dia sequer por ter bebido demais e acordado horas depois. Talvez devido ao ambiente sombrio e sem graça que se tornara meu apartamento é que necessitasse tanto daquela beleza colorida de Manuela. Os cômodos vazios, a lâmpada queimada da sala há dois meses sem trocar, a falta de vizinhos no meu andar, o porta-retrato com a antiga foto de Laura segurando as crianças naquela nossa última viagem seis anos

Brincava com a verdade, num estímulo de quem não sabe sorrir de forma natural. Achava do destino um tolo, enxergava a todos como máquinas fadadas à ferrugem. Quem sabe uma forma nova não se assumiria se trocassem sua engrenagem,  fosse feita alguma reposição de peças, entendido melhor seu manual? Ninguém sabe. E também não quiseram saber. Já completava a quadragésima década e, até então, não via sentido em nada. Produto de consumo do tempo, era capaz de perceber apenas o decurso de anos, ignorava os dias, semanas e meses. A tosse constante e a náusea eventual lhe lembravam de sua condição humana. O terno padrão como o de vários outros lhe deixava ainda mais longe de si, desafiando se havia alguém ali dentro. Quis parar com essa brincadeira. Usou a forma que julgou menos gravosa. Não conseguiu, acordando e se frustrando ao ter os olhos abertos, além dos entediantes dias no hospital para desintoxicação. Falha a tentativa de romper com a própria vida, sentiu ira por estar em um mundo ond

Tarde de verão

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Quinta-feira de dezembro. O sol já deixava sua ardência para o anúncio de que em breve iria se pôr. Acordei atordoada notando que os sonhos bons do cochilo após o almoço haviam se estendido de forma a quase impedir que eu cumprisse com o combinado. Em um salto, me levantei, lavei o rosto, vesti algumas roupas, peguei as chaves do apartamento e saí correndo pelas ruas, desviando das pessoas que consegui e dando algumas esbarradas em sujeitos de bem que me olhavam indagando-se se eu havia roubado alguém para justificar a pressa. Não havia. Apenas tinha a intenção de chegar até o farol antes do pôr-do-sol. No Recife, se o relógio mostrasse mais que 16h30, já se poderia desapertar o passo e se contentar com o do dia seguinte, o sol não espera. E Miguel disse que também não esperaria. Era a última chance que daria a nós dois. Lembrava disso e corria ainda mais. Com o trânsito do horário, era incogitável usar qualquer outro meio que não fosse os pés. Até a ciclovia ficava lotada, em razão d

Da mantença para mudança

Seis horas. Com sede de viver, tratou de se levantar. A manhã de julho cujo frio era prazeroso exigia que, para seu desfrute, o ar pudesse tocar a pele. Arrancou a camisa e abriu a porta da cozinha a fim de sentir o frescor do vento, aproveitava para notar como era bom não conter suas vontades temendo ser lembrado de que poderia se resfriar ou algo besta assim. Renovado após aquela noite, quis preparar o café. Passara anos escapando de casa logo cedo e acabando por se sujeitar a tomar aquele meia boca da padaria, pago com moedas que lhe pesavam no fim do mês. Agora sentia o cheiro de uma bebida forte, recém preparada. A despeito de estar sozinho, brindou consigo mesmo. Era fácil notar o efeito que lhe causara aquela mudança. Sempre tão seguro e estável, era novo ter os pés fora do chão e algumas incertezas no peito que pouco lhe incomodavam. Queria explorar ainda mais aquilo que sentia, trazer à tona as faíscas que lhe explodiam por dentro, virar-se do avesso. O riso no canto da b

Brevidade

De questionamentos vivem alguns. Cobranças infundadas e críticas descabidas. Colocam-nos como querem, sem oportunidades reais de explanação. E, ainda que nos dessem tal espaço, considerariam nossas palavras mera retórica, ignorariam o que contêm. Os olhos incisivos desviados do trilho como cães raivosos contidos por coleiras, o desgosto espumante na boca, a garganta travada na falha tentativa de conter o remorso que já transborda, os pulsos cerrados, os passos apressados. É possível sentir em forma de reflexo o resultado de cada emissão que figuramos como destinatário, ainda que intangíveis e sem apontamentos diretos. Talvez nos desvendem. Talvez tentem nos reprogramar. Talvez tenham em mente que não há situação alguma neste mundo em que se aplica o instituto da segunda chance de modo a restabelecer um idêntico quadro. Todo ato é relato, mas nem todo relato fora mesmo um ato.

Atrasado fim

Uma vez ali, sinto como se o resto do mundo irrelevante fosse. Não me importo com o que dirão. Posso ser deus ou o diabo. A mim não cabe decidir ou influenciar. Deixo que optem conforme queiram, que gritem ou se rendam, que se soltem ou se prendam. Não pregarei minha boa-fé ou autonomia. Estão cientes, dispensam relatos contentes. Creio que daqui não passará. Covas são para se cavar e os corpos, para enterrar. Deixe-me ir ou terá de arcar com o peso do pesar. Lamento pelas escusas que não usei e pelas desculpas que disfarcei. Talvez eu seja mesmo o diabo, já não sei.

Falsa satisfação

Beijei-lhe em um desconforto incômodo, desafiando os quatorze anos que compartilhamos juntos. Era como se aquela cama não fosse a nossa e aquela casa não estivesse conosco por todo esse tempo. Enquanto aqueles olhos sedentos me fitavam, aguardando por me consumir, percebi como eu desconhecia o prazer daquela cópula e questionei-me se esta estranheza que transborda minhas dimensões não era por ele notada. Senti saudades dos tempos em que morava com mamãe. Ainda que aquele quarto mal nos comportasse e a fome e o frio nos lembrassem de toda a miséria, não restava muito espaço para sentimentos ruins. As demandas fisiológicas predominavam, afastando qualquer dor proveniente de outra fonte. Por vezes, acreditei que tudo fosse uma coisa só, bastando que eu me saciasse fisicamente para que fosse tomada por um êxtase emocional. Mas, por fim, pude me convencer de que nada era mais inefável que as emoções. Deitada ali em meio àqueles lençóis caros, encarando o homem que tornou apenas lembrança
We're always playing games. I guess we were born to do that. No matter what Kant said, we're never gonna do something without an intention.

Devaneios Oníricos

Duas horas da manhã e é, no mínimo, a décima vez em que olho o relógio. Às seis horas, o despertador começará a gritar, na doce ilusão de que estarei dormindo, quando, na verdade, meu sono sequer ainda terá chegado. O formato do meu corpo desenhado no colchão só me faz lembrar que já estou deitada há quatro horas. Esta noite, inclusive, fiz questão de recolher-me mais cedo, ciente da necessidade de oito horas bem dormidas para uma boa aparência amanhã. Bem se sabe que para uma mulher de 49, não há maquiagem milagrosa. Parte disso é culpa deste raio de travesseiro. Se fosse um de plumas de ganso feito o de mamãe, é claro que eu já estaria dormindo há muito tempo. Isto me faz lembrar do tempo em que o comprei, ainda noiva de Edgar. O perfume daquele infeliz ficava sempre impregnado não só no travesseiro, como em toda cama, além de meu corpo e meus cabelos... Passávamos horas deitados juntos, como se não houvesse um mundo lá fora e tudo que precisássemos estivesse dentro deste quart

Perspectiva

A cada porta que se fecha, eu vejo mil se abrindo. Isto faz meu dia lindo. Abraço cada oportunidade como se filhos fossem. Deixo-os à vontade, faço de meus braços perfeita morada. Não cabe insegurança ou hesitação. É como se alguns passassem a vida se lamentando pelo que não foram, deixando de se admirar com o que ganharam no percurso não planejado. Calo-me para conter minha revolta contra estes. Inspiro o ar da renovação e expiro aquele de contradição. O futuro é o hoje em forma de expectativa, nuvem de desejos e questões. Construo-o com cada passo, aguardando pelo destino que virá como resultado. Não há que se temer em almejar o melhor, somos quem queremos ser, ao contrário do que cantam por aí.
"They play it safe, are quick to assassinate what they do not understand. They move in packs, ingesting more and more fear with every act of hate on one another. They feel most comfortable in groups: less guilt to swallow. They are us. This is what we have become, afraid to respect the individual. A single person or event or circumstance can move one to change: To love herself. To evolve." https://www.youtube.com/watch?v=9hVp47f5YZg https://www.youtube.com/watch?v=bI3qRovp1A8

Frieza realista

Algumas pessoas se portam como se somente esperassem pelo nosso fracasso. São meros telespectadores da vida real ou talvez fantoches movidos pelo prazer de pressentir e comprovar o desgosto alheio. Tais seres, dada sua insignificância, não merecem nada além de nossas condolências. Por eles compartilho o pior sentimento que ao homem pode ocorrer, deprimindo-me ao pensar como podem ser tão infelizes. Nada resta a nós a não ser retirar-lhes o doce gosto ácido de estarem certos no próprio pessimismo. Que sigam sendo miseráveis como quiserem, enquanto nos empenharemos em decepcioná-los.

concepts

Some people are just fine getting the opening act. And some don't dream even about that. But others are born to set the world on fire.

Decurso ingrato ou apenas sensato

Tempo. Talvez de tão curto tenha se tornado avarento, mostrando, nas nuances do firmamento, que pouco já é suficiente para seu contento. Preso à parede, o relógio só faz lembrar que seu destino está selado feito o daquele bastardo que tira a vida de outro desafortunado. Não basta querer se libertar, estará sempre fadado a fracassar, assim como o tempo quando quiser parar.

Realismo hipócrita

Cada um interpreta os fatos da maneira que lhe convém. Isto não é um defeito ou problema para ninguém. O que se busca é estar em paz com as próprias ações, justificá-las, dar-lhes razão. Não há, portanto, que se recriminar aquele que, com seu tato, reconta qualquer ato com ênfase no que quer e descaso no que não lhe couber. Resta, assim, aceitar e acatar o que quiserem nos empurrar, mas, claro, resguardar nosso próprio pensar, e apenas repassar aquilo que nos propusemos a acreditar.