Sapos

- Sabe que andei pensando e... bom, cheguei à conclusão de que você é como um livro do Dostoiévski. Parece interessante, cheio de palavras difíceis, se adapta bem ao frio, combina com café, traz aquela faísca de cultura, como se, apenas por estar perto, fosse me tornar, por consequência, também mais interessante. Porém, é chato pra caralho. "Como assim? Tá ficando louca? Dostoiévski! Não fale mais isso perto de ninguém. Dostoiévski, cara" É, certamente não falarei mesmo. Inclusive, na minha estante de casa tem no mínimo uns quatro livros do russo, que guardo há anos. Alguns lidos, outros intocados. O que fazemos quanto à chatice de Dostoiévski? Ignoramos, ora. Na verdade, sequer admitimos para nós mesmos. No fundo, temos em mente que Dostoiévski é muito mais interessante do que jamais poderemos ser e, claro, nos enchemos de culpa por não nos sentirmos envolvidos na trama do autor, tampouco fazer algumas concessões para gostar dele ou, ainda, cair no sono durante a leitura. Logo pensamos que o erro é nosso mesmo, deveríamos ser melhores para gostarmos de Dostoiévski, para Dostoiévski gostar da gente também, não é mesmo? Enquanto isso, a gente gosta de várias outras coisas, mas nenhuma tão relevante quanto Dostoiévski, então pra que dar atenção, certo? Melhor mesmo é se contorcer porque o livro está ali na estante há anos sem que você tenha capacidade de o ler, a despeito de sua extensão intelectiva. Complexidade nunca foi problema para você, e é justamente por isso que o problema do cara é só a chatice. Assim como o seu. Quer saber? Foda-se. Você e ele são dois chatos, prolixos, donos da razão. Vão se foder. Na verdade, esquece essa analogia com Dostoiévski, estou usando o nome dele nome em vão. Era só um pretexto para começar essa conversa de forma sutil, e também porque vi você carregando Os Irmãos Karamázov outro dia, bem sua cara mesmo. 
Marcela repetia essas palavras no caminho para a casa, deixava-as enfileiradas na ponta da língua, uma após a outra, para solta-las todas quando visse Carlos novamente no dia seguinte. Na medida em que sentia o efeito que a frase formada teria, deixava escapar um riso disfarçado e ansiava ainda mais para o momento ideal de executa-las. Pensava em falar tudo quando ele menos esperasse, num dia quieto, em que estivessem todos em paz. Ela se sentaria num dos banquinhos da copa, ao lado da sala de reuniões, enquanto o olharia pegando um café e começaria a falar como quem conta um caso.
Imaginar o plano a instigava ainda mais, e agora seus risos na rua eram um pouco mais evidentes, a ponto de chamar atenção de quem passava. E continuava montando algumas palavras de maneira mais enfática:
- A verdade é que você se considera um sábio, né? Fica profetizando suas sabedorias pros puxa-sacos e pros que não estão nem fodendo pra você. Escolhe essas palavras bonitas, suaviza a voz, concentra o olhar e, no final, fala merda. Sempre merda. Nunca te falei como me sentia sobre seus falsos ensinamentos, porque pensava que seria capaz de aturar você nesse intervalo de tempo que dividimos o espaço vez ou outra, mas sua presença começa a me incomodar de forma a tirar de mim toda a força que pensei que eu teria contra os donos da mesquinharia toda. Não posso tolerar suas intolerâncias. Não posso aceitar seus julgamentos. Você notadamente se sente superior, ergue a cabeça e apressa os passos a cada canto que vai, como se o que fizesse fosse mais importante do que o que os outros fazem. Cara, sua pressa não me diz nada além de mais merda sobre você. Você faz vento quando passa por mim. Sua sede em se vender me enoja. Quanta serventia ao dinheiro e ao poder. Você me faz sentir cruel dizendo isso, mas o cruel aqui é você todos os dias. Você não salva vidas. Pra que toda essa imponência? Você não é nenhum super-homem. Não te contaram isso? Deixa eu te colocar a par das coisas: você é só mais um, cara.
As palavras já tomavam um tom agressivo e Marcela começava a se ouvir, como se fosse sua própria espectadora. Era deleitável a sensação de ter a chance de dizer tudo isso.
Verdade é que letra por letra seria empacotada e guardada no fundo de uma caixa qualquer, no depósito de amarguras da vida, armazém localizado no fundo do peito, que eventualmente pode com o tempo expirar e dar sossego, ou, na pior das hipóteses, ficam as caixas empilhadas se acumulando, uma a uma com gosto de sapos, sapos engolidos com o suor do dia, sabor do preço da vida.
Lembrando-se disso, perdeu a graça ainda antes de cruzar o portão de casa.

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