Da mantença para mudança

Seis horas. Com sede de viver, tratou de se levantar. A manhã de julho cujo frio era prazeroso exigia que, para seu desfrute, o ar pudesse tocar a pele. Arrancou a camisa e abriu a porta da cozinha a fim de sentir o frescor do vento, aproveitava para notar como era bom não conter suas vontades temendo ser lembrado de que poderia se resfriar ou algo besta assim.
Renovado após aquela noite, quis preparar o café. Passara anos escapando de casa logo cedo e acabando por se sujeitar a tomar aquele meia boca da padaria, pago com moedas que lhe pesavam no fim do mês. Agora sentia o cheiro de uma bebida forte, recém preparada. A despeito de estar sozinho, brindou consigo mesmo.
Era fácil notar o efeito que lhe causara aquela mudança. Sempre tão seguro e estável, era novo ter os pés fora do chão e algumas incertezas no peito que pouco lhe incomodavam. Queria explorar ainda mais aquilo que sentia, trazer à tona as faíscas que lhe explodiam por dentro, virar-se do avesso. O riso no canto da boca às vezes era interrompido por um certo remorso que lhe eclodia, lembrando-se de quanto tempo perdeu no escuro, guiando-se entre paredes de concreto como se não houvesse um campo de grama lá fora. Assim, em sua mente, alternava o labirinto cinza pelo qual estava perdido com a imagem do verde espalhado pelo chão combinado com o azul do céu que por todo esse tempo estavam a seu alcance para ver e sentir, como verdadeiras manifestações da vida vermelha e viva, se é que isso pode ser dito assim.
Largou a xícara suja na cozinha sem medo de ser interpelado por qualquer questionamento imbecil. Tomou um banho frio, percebendo até a água. Nestes nove anos, nunca desfrutara um banho tão minuciosamente, sem pressa em desligar o chuveiro, ciente de que a porta não iria se abrir a qualquer momento para uma pergunta fora de contexto ou para que fosse anunciada uma chegada ou saída. A sensação de estar completamente sozinho lhe apetecia. Por um momento, questionou-se se não estava sendo cruel em deleitar a falta de companhia. Todos gostam de companhia, ora. Daí se lembrou daquele velho ditado que ressalta e prefere estar só quando comparado com mal acompanhado. Sentiu-se cruel novamente. Não podia dizer que Larisse era uma má companhia. Só não havia mais amor, o que não era culpa dela ou dele.
Na sua compreensão de mundo, o amor era nada mais que uma construção sólida e gradual, motivo pelo qual justificava estar com Larisse. Nos últimos meses, havia percebido o quão errado estava. O amor, como dito por Camões, é fogo. E tal como fogo, arde. Comporta um imediatismo e necessidade que fogem da solidez. É chama que se acende. Mas é também chama que se apaga. Disse tudo isso a Larisse, que recepcionou muito mal, como já esperava. Entretanto, tirou de suas costas um fardo deveras pesado, após noites planejando como noticiar o fim e já quase sem esperanças de que fosse conseguir. Por isso mesmo, contentou-se com a ira de Larisse e deixou que ela digerisse da forma que bem quis, atirando-lhe alguns utensílios e diferindo-lhe algumas palavras toscas. Apenas a sensação de ter conseguido já lhe saciava.
Desligou o chuveiro e reparou no teto. Refletindo sobre as dimensões daquele apartamento, sentiu-se um pouco idiota por estar tão detalhista. Mas a verdade é que aquele espaço era tão diferente do qual estava acostumado que se empolgava com as novidades. Sabia que em poucos instantes iria ver Jade e lhe contar o resolvido. Preparava-se para lhe dizer de forma despretensiosa, a fim de não deixar transparecer o quão ansioso já estava por viver aquilo que sentiam.
Vestiu-se e foi trabalhar. Chegando ao escritório, dirigiu-se à sala de Jade que ficava ao fundo. Neste dia, resolveu em uma fração de segundos dispensar a batidinha de costume na porta e foi logo entrando com um bom dia pronto para sair da boca. Antes que o dissesse, viu Henrique com corpo colado no de Jade, agarrando-lhe pelos cabelos e beijando seu pescoço.
Em uma ironia com seus pensamentos mais puros, Jade trajava uma blusa verde, fazendo-lhe lembrar como o campo que se prometia poderia ser transformado em um labirinto cinza de forma instantânea.
Sabendo de seus poucos direitos, nada falou com palavras. Apenas seus olhos ao cruzarem com os de Jade disseram toda a decepção a que se transformou o mel que adoçava seu coração, traçando uma linha reta dirigida a ela que se petrificou eternizada em sua mente. Saiu da sala e decidiu que não trabalharia neste dia mais, caminhando de volta para casa.
No trajeto, tentava ver o azul do céu, mas não se sabe se pelo clima nublado ou pela dor, o cinza predominava. Perguntou-se de onde tirou aquela ideia de verde pelo chão, reparando na calçada cimentada e no asfalto da rua. Lembrou-se de Larisse, preocupada com sua saúde, com a organização do lar, com o bem estar do casal.
Já chegava perto de seu novo apartamento e, ao atravessar a rua, ignorou o verde do semáforo, dando-se conta apenas quando ouviu uma forte buzina que anunciava já não haver mais tempo de mudança. Atingido duramente pelo carro dono deste som que lhe sentenciou, teve seu corpo lançado metros à frente. O cinza do asfalto foi lentamente tingido por um vermelho que se espalhava à medida que curiosos se aproximavam. Acompanhou até a chegada do sexto, vindo, então, a fechar os olhos involuntária e definitivamente, enquanto o frio de julho lhe engolia.

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