Falsa satisfação

Beijei-lhe em um desconforto incômodo, desafiando os quatorze anos que compartilhamos juntos. Era como se aquela cama não fosse a nossa e aquela casa não estivesse conosco por todo esse tempo. Enquanto aqueles olhos sedentos me fitavam, aguardando por me consumir, percebi como eu desconhecia o prazer daquela cópula e questionei-me se esta estranheza que transborda minhas dimensões não era por ele notada.
Senti saudades dos tempos em que morava com mamãe. Ainda que aquele quarto mal nos comportasse e a fome e o frio nos lembrassem de toda a miséria, não restava muito espaço para sentimentos ruins. As demandas fisiológicas predominavam, afastando qualquer dor proveniente de outra fonte. Por vezes, acreditei que tudo fosse uma coisa só, bastando que eu me saciasse fisicamente para que fosse tomada por um êxtase emocional. Mas, por fim, pude me convencer de que nada era mais inefável que as emoções.
Deitada ali em meio àqueles lençóis caros, encarando o homem que tornou apenas lembrança a vida imunda por que passei, constatei que as referidas emoções nunca receberam a gratificação devida. Mas a verdade é que para que eu me preocupasse com elas, situadas no topo da pirâmide de Maslow, era sempre necessário vencer as barreiras deste corpo físico e, talvez por isso, eu as tenha deixado às mazelas, olvidando-me de percebê-las cedo demais e, assim, contentei-me com as regalias e promessas de uma vida promíscua, sem sentir uma parcela sequer daquilo que seria proporcionado por amor, palavra que soa como se não fosse minha.
Envaideço-me aos outros e tranco em mim todo remorso, evitando olhar qualquer um nos olhos para que não transpareça a infelicidade  estampada nos meus. Invejo aos que ainda começam a vida e penso, por alguns instantes, em retomá-la. Logo, o preço que pago pela comodidade me chama a mais um beijo, fazendo cessar qualquer suspiro que pensei ter sido meu e quebrando o silêncio que encontrei em meus pensamentos reprimidos no âmago do meu ser.
Encurto o incômodo e dou-lhe o que precisa, a satisfação que nunca percebeu ser falsa.

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