Café Frio

E eu continuava a observá-la. Sempre nos mesmos horários. Era incrível sua pontualidade. Houve um dia que me atrasei por cinco minutos para alcançar a janela e, quando cheguei, ela já não mais estava lá desfilando graciosa. Hesitei por algum tempo, pensando que ainda pudesse passar, mas era tarde demais. Às sete horas, nem um minuto a mais, nem um a menos, e lá se ia minha bela junto com o frescor da manhã em sentido leste. Voltava ao entardecer, retomando, imagino, o caminho de casa, sentido oeste. Eu me culpava, me castigava e chegava adiantado no dia seguinte se deixasse de vê-la um dia sequer por ter bebido demais e acordado horas depois.
Talvez devido ao ambiente sombrio e sem graça que se tornara meu apartamento é que necessitasse tanto daquela beleza colorida de Manuela. Os cômodos vazios, a lâmpada queimada da sala há dois meses sem trocar, a falta de vizinhos no meu andar, o porta-retrato com a antiga foto de Laura segurando as crianças naquela nossa última viagem seis anos atrás e o café frio e sem açúcar que nunca substituirá aquele quente e docinho de Laura podem ser alguns dos motivos que façam com que eu precise dessa luz de Manuela. Sem ver seus cachos dourados pendendo sobre os ombros meio descobertos em razão de seus despreocupados vestidos floridos, seu andar leve, suas maçãs do rosto rosadas, não sei como seria minha triste rotina.
Desde que Laura e as crianças se foram, me restou apenas um peito vazio e algumas garrafas ainda por esvaziar, além das perguntas que nunca se calam... Por que não eu? Eu dirigia. Eu estava bêbado. Por que os castigar? Na ausência de respostas, joguei fora todos os santos da casa. Pedaços de matéria que corporificaram minha revolta ainda incompleta. Continuo a me revoltar um pouco a mais a cada dia, não troco a lâmpada, deixo o café esfriar, embriago-me até sentir que meu corpo está castigado e vou dormir com a sensação de que ainda não paguei o preço que minha família valia.
Mas Manuela me contradiz, talvez por ser tão parecida com Laura ou pela ingênua beleza natural. Quando a vejo, não há sombras, não há tristeza. Ela caminha como se tudo no mundo estivesse em seu devido lugar. Já pensei em descer as escadas e abordá-la, perguntar seu nome, olhar em seus olhos. Mas Manuela já tem nome em minha cabeça. Além do mais, há um tempo não faço a barba e minhas olheiras não causariam boa impressão. Também seria trair minha amada esposa. Laura sucumbe em seu leito de morte ou me olha lá de cima do céu. Em nenhuma hipótese parece justo que eu permaneça na terra a falar com outra mulher.
Continuo, então, a apenas observá-la. E, claro, invento histórias para lhe dar sentido. Manuela nunca amou. É por isso que ela traz esse ar leve e sem amarguras, pois nunca soubera o que é ter o peito cheio de dor. E quem ama sente dor. Tem trinta anos, mas não sabe disso. Manuela não conta o passar do tempo, ela vive. Não vê que o relógio corre, por isso sempre anda no ritmo que seus passos pedem e não há nada que a faça ter pressa. Ela nunca ouviu a história de Adão e Eva, e é por isso que não vê a necessidade de achar seu par. Não lhe contaram que no mundo as almas nascem para se encontrar, por isso não lhe dói estar sempre sozinha. Manuela não sente fome, não sente frio, não há nada humano que a atinja, está sempre além das limitações impostas pelas condições fisiológicas dos homens. E é em razão disto que conserva tal beleza genuína. Seria Manuela um anjo? Mas o que faria um anjo em minha rua? Rondando o centro desta cidade imunda e sem cor? Não, Manuela não é anjo. É uma burra. É burra porque vive aqui, quando deveria estar em um bosque cheio de flores, longe desses carros barulhentos, sem precisar desviar desses mendigos sujos jogados no chão. É burra porque não repara ao redor. Será que já me vira aqui de cima? E se me visse, será que notaria em mim?
Prefiro não imaginar. Não mereço ninguém. Já desgracei a vida de quem mais amava e a minha. Se eu já não tivesse destruído o que restou daquele carro, o destruiria agora, só para sentir um pouco de ira, só para sentir algo... Sentir vivo. Acho que morri junto com eles naquele dia, não sei porque insisto em levantar e abrir as janelas. Acho que não farei mais isso. Amanhã não verei Manuela novamente. Não mereço embelezar minhas vistas com sua cor e alegria.
Meus olhos teimosos insistem em correr para o relógio quando os ponteiros marcam 7h. Talvez eu deva me despedir de Manuela, a vendo pela última vez. Eu sei o brilho que está lá fora exatamente agora, pronto para irradiar meus olhos. Corro à janela e a força empregada para abri-la é tamanha que o barulho causado faz com que uma pomba que por ali estava se coloque a voar assustada e destrambelhada, chamando a atenção de alguns. Por um momento meu peito se enche de ar. Manuela está se curvando, fico esperançoso. Inclino-me sobre a janela. O dia está lindo. Laura está lá em cima a sorrir para mim, como se aprovasse minha escolha. Pela primeira vez, descubro que todo este tempo, Laura esteve me olhando.
Estes segundos ficam congelados demonstrando a eternidade que uma escolha traz. Manuela está a volver o olhar para o lado e deixa transparecer que o próximo movimento trará seus olhos para mim. Eu não consigo evitar gritá-la: "Manuela, Manuela... aqui!!!" Sim, ela olhou. Ela está me esperando. Todo este tempo, vivemos sozinhos em vão, poderíamos estar juntos. "Ei, Manuela, vou até você, me espere!!!" Manuela não sorriu para mim. Ela abaixa o pescoço e parece que irá continuar seguindo seu rumo. Não posso deixar que vá embora. É nossa chance. "Espere-me, Manuela!!!" Ela vira as costas e se vai. E eu de braços abertos vou ao seu encontro em um salto que sela a minha passagem neste mundo volátil demais para se usar escadas. Se eu não encontrar Manuela, verei Laura novamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ode a sp

Fluxo vespertino

Perspectiva