Brincava com a verdade, num estímulo de quem não sabe sorrir de forma natural. Achava do destino um tolo, enxergava a todos como máquinas fadadas à ferrugem. Quem sabe uma forma nova não se assumiria se trocassem sua engrenagem,  fosse feita alguma reposição de peças, entendido melhor seu manual? Ninguém sabe. E também não quiseram saber. Já completava a quadragésima década e, até então, não via sentido em nada. Produto de consumo do tempo, era capaz de perceber apenas o decurso de anos, ignorava os dias, semanas e meses. A tosse constante e a náusea eventual lhe lembravam de sua condição humana. O terno padrão como o de vários outros lhe deixava ainda mais longe de si, desafiando se havia alguém ali dentro. Quis parar com essa brincadeira. Usou a forma que julgou menos gravosa. Não conseguiu, acordando e se frustrando ao ter os olhos abertos, além dos entediantes dias no hospital para desintoxicação. Falha a tentativa de romper com a própria vida, sentiu ira por estar em um mundo onde a entrada fora forçada e a saída, por mais que tenha sido dita facultativa, era dolorosa. Levou mais alguns dias se questionando o que era pior, continuar se arrastando ou se jogar em um impulso final. Sempre temeu qualquer altura. Constatou que todos aqueles seres que caminhavam pelas ruas estavam dopados por algum elemento que desconhecia, pois todos pareciam saber para qual direção andar, ao contrário de seus passos tortos que lhe guiavam ora para um lado, ora para outro. Vendo que não mais cabia ali, optou por ser mais forte e resistir à dor do impulso final. Dirigiu-se ao topo do prédio que vivia, chegou a ponta dos pés na lateral, olhou para baixo. Não sabia distinguir se o que via eram pessoas, cães ou carros, todos pareciam velho maquinário. Em uma contradição às suas expectativas, certa sensação de tranquilidade agora lhe assolava. O tão temido salto, que havia pensado ser custoso quase a ponto de lhe fazer permanecer vivendo, já não tinha um aspecto cruel. Assemelhava-se a um selo de liberdade. Abriu os braços, sentindo o vento em seu corpo e quase deleitou a condição humana. Pela primeira vez, estava bem consigo, sentia agora que era o dono de suas dimensões e poderia deliberar sobre o que com elas seria feito. As pernas não tremiam, a despeito do medo de altura que alimentou a vida toda. Desatou o nó de sua gravata e quis estender o momento. Sentou com as pernas para fora do prédio. Sentia como se não houvesse do que se debater ali. Não tinha medo de cair, pois havia mesmo planejado se jogar. Agora entendia melhor que os medos que são alimentados durante a vida são fictícios e temporários. A cada fase há uma preparação diferente e as situações são encaradas com outros olhos. Sentiu uma pontada de fome, lembrou que a última refeição que havia feito fora o café da manhã. Desceu e preparou seu jantar, deixando as janelas abertas para sentir um pouco melhor o ar da noite.

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