Devaneios Oníricos

Duas horas da manhã e é, no mínimo, a décima vez em que olho o relógio. Às seis horas, o despertador começará a gritar, na doce ilusão de que estarei dormindo, quando, na verdade, meu sono sequer ainda terá chegado.
O formato do meu corpo desenhado no colchão só me faz lembrar que já estou deitada há quatro horas. Esta noite, inclusive, fiz questão de recolher-me mais cedo, ciente da necessidade de oito horas bem dormidas para uma boa aparência amanhã. Bem se sabe que para uma mulher de 49, não há maquiagem milagrosa.

Parte disso é culpa deste raio de travesseiro. Se fosse um de plumas de ganso feito o de mamãe, é claro que eu já estaria dormindo há muito tempo. Isto me faz lembrar do tempo em que o comprei, ainda noiva de Edgar. O perfume daquele infeliz ficava sempre impregnado não só no travesseiro, como em toda cama, além de meu corpo e meus cabelos... Passávamos horas deitados juntos, como se não houvesse um mundo lá fora e tudo que precisássemos estivesse dentro deste quarto: nosso corpo, mente e coração. Preferencialmente nesta ordem. Conhecíamos bem um ao outro. Sabíamos de nós. Quem éramos. O que éramos. O que gostávamos e como gostávamos. Pelo menos assim eu pensava. Não sinto saudades, guardo só um restinho de vontade de voltar às coisas como eram antes de descobrir a segunda namorada de Edgar. Não creio que isto possa ser chamado de saudade.

Enfim, claro que a culpa não é só do travesseiro. Este colchão é horrível. De segunda mão. Solange me deu quando se casou. Eu sei que não é nada de se orgulhar que a irmã mais nova se case antes da mais velha. Mas foi questão de sorte. Conheceu o noivo em uma despedida de solteiro que havia ido para ser a atração da festa, se é que me entendem. Para uma moça festeira feito ela, costuma ser difícil se casar, mas, seis meses de namoro e lá estava ela no altar vestida de branco.

Eu que deveria me casar primeiro. Mas não nasci para aturar marcas de batom no colarinho de homem meu. Eu não uso batom. Muito menos daquela cor. Tadeu deveria ter vergonha de olhar na minha cara, mas, ao contrário, passa por mim e ainda comprimenta amistoso. O adultério sequer é crime agora. Perceberam que se a fidelidade fosse imposição legal, grandes seriam as chances de se comprometer a perpetuação da espécie, uma vez que não haveria parceiros disponíveis. Todos atrás das grades se comendo, enquanto as pobres mulheres pelejando com os dedos e instrumentos de borracha.

Às vezes penso que se eu houvesse me acalmado antes de jogar as roupas de Tadeu pela janela, talvez teria lhe perdoado. Poderíamos ainda estar juntos e, neste momento de insônia, eu o acordaria dizendo que não estou conseguindo dormir. Assim, faríamos amor, ficaríamos abraçados sentindo o calor de nosso corpo e o sono certamente chegaria antes que o suor secasse.

Meus olhos inquietos correm ao relógio mais uma vez, fazendo com que eu me arrependa ao ver as horas. Três da manhã como naquele filme idiota em que o telefone toca e aí já se viu... Eu não queria assistir este filme, mas era o meu primeiro encontro com Daniel e eu não quis fazer muitas exigências. Na esperança de receber uma ligação no dia seguinte, tentei ser a mais versátil que pude, aceitando todos os malabares propostos, como se estivessem me propiciando prazer também. Dores na lombar foi o que eu recebi no dia seguinte.

Preciso me arranjar logo, mais alguns meses e chego na casa dos 50. Meio século. Espero que ninguém se lembre que é meu aniversário e me poupe das caras de indagação. Sei que todos ficam especulando por que sou sozinha. Até me afastei de antigas amigas, cansada de ouví-las falar como vão as respectivas vidinhas acompanhadas de seus maridos.

Grande colaboração vem da vizinhança. Os Alves são um casal muito barulhento. Todas as noites se divertem, desafiando quem os ouve a crer nos cabelos brancos que ostentam. Do meu quarto, ouço os gritinhos de Dona Cristina e as tosses de Sr. Osvaldo, que parecem não ser nenhum óbice. Senhorinha mais assanhada. Mas ela que não espere só para ver. No dia em que eles não comparecerem à reunião de bairro, vou relatar estes fatos ao presidente da Associação. Claro que vou pedir que não digam que eu contei, pois toda quinta ela traz alguns bolinhos aqui que sobram do jogo de tranca com as amigas. E eu gosto dos bolinhos.

Já ouço os primeiros passarinhos chegando às árvores do quintal. Passarinhos cantam assim porque não precisam trabalhar. Caso tivessem que pagar as contas que todos pagam, não seriam sempre tão satisfeitos.

A claridade que anuncia o dia começa a invadir meu quarto lentamente, deixando desenhado o formato da cortina na janela. A luz entra pelos dois cantos em que ela não cobre. Eu disse que a cortina estava pequena quando mamãe trouxe aqui para mim. Pedi para trocar e ela disse que não tinha como. Eu já deveria imaginar que era usada. Minha mãe trazendo presentes para mim só pode ser por algum motivo. E o motivo é que papai comprara uma nova. Foi embora emburrada porque eu não agradeci. Claro que não agradeci. Eles deveriam fazer muito mais. Mas só passam por aqui no meu aniversário. Por isso, este ano vou fingir que não estou em casa. Provavelmente vou alugar alguns filmes e comprar coisas gostosas de comer. Fecho a porta e se me ligarem, não atendo.

Pronto! Era só o que faltava! O cachorro do Luizinho latindo mais uma vez! Amanhã eu jogo veneno na comida desse pulguento pelo quintal. Ele não para de latir quando começa. Esta noite não durmo mais. Agora parece que ele está correndo atrás de alguém. Uma mulher, pelos gritos. Opa! Sou eu. Ele está correndo em minha direção. Não, Brutos! Não! Não está vendo que estou deitada e não consigo correr? Como conseguiu entrar aqui? E que árvores são essas no meu quarto? Você está latindo como se fosse à pilha, Brutos! O que está acontecendo com você? Jogaram veneno em você antes de mim e agora fica latindo assim, é isso? trimmmm trimmmm trimmmm Saia daqui, cachorro dos infernos! trimmmm trimmmm trimmmm trimmmm Ah não! Seis horas.
 

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