Quatro

Eram quatro. Quatro estranhos entre quatro paredes. Quatro realidades distintas postas a se confrontar. Quatro interesses diversos que se encontravam em dimensões comuns, porém cruzadas, proibidas e encobertas.
Já marcavam quase 8h da manhã e as primeiras impressões do domingo iam chegando de mansinho. O céu ia se abrindo num cinza frio, invadindo a sala de luz pelas janelas completamente abertas, enquanto as cortinas se balançavam com o vento.
Encaravam uns aos outros e já não tinham tanto o que falar. Os defeitos de cada um haviam ficado expostos nas últimas horas, quebrando todo o frisson que a perfeição do desconhecido causa.
Há cerca de uma hora antes, olhava pela janela e notava uma fotografia da cidade, marcada pelos aspectos daquele lugar e do momento, algo completamente novo. Pensava nada ter a temer, era justo que se lhe aproveitasse a vida como bem entendesse, livrando-se, posteriormente, de qualquer consequência ou remorso, coisa que não era hora de se preocupar.
Além disso, era tarde demais para voltar atrás, seu personagem deveria ser interpretado até o fim, já que aquela roupagem é que havia escolhido para se revestir naquele dia, brincando de ser alguém que não era, a player, como foi chamada.
Com pouca cautela olhava para ele, enquanto sabia do risco. Ele correspondia e, assim, constatavam o quão trocados estavam, tal como em uma história narrada por livros. Lembrou-se de "Entre quatro paredes", de Sartre, e logo identificou quem seria Garcin, Inês e Estelle.
Sua visão da realidade se contorcia pelo distúrbio do álcool, colocando-lhe reações das quais não se orgulharia em lembrar, enquanto entorpecentes ditavam a visão dos demais, delimitando as noções cognitivas de cada um. Não pareciam alucinados, mas talvez todos estivessem e por isso não notavam.
A cena havia se tornado tão confusa a ponto de não saber mais o que estava acontecendo. Pediu explicações:
- Espera, quem é ele exatamente, alguém pode me dizer?
- Fica tranquila, conheço o Henrique a vida toda.
- Mas ele mesmo contou essa história que acabei de te repetir.
- Como assim? Henrique, o que você tá falando?
Sua cabeça dava mil nós e resolveu encerrar a discussão:
- A verdade é que tanto faz. Amanhã é outro dia e nada disso terá importância.
O problema é que se esquecera de que a vida é composta de histórias e, se uma história é mal contada, seu livro fica borrado. Como se uma página houvesse sido arrancada ou rabiscada, e isso, é óbvio, lhe incomodaria até não se lembrar mais daquele capítulo.
Por isso, ao chegar em casa, fez com que todas as memórias que colecionou se unissem, na tentativa de entender melhor quem foi. Não tinha ninguém para lhe ajudar a recontar, todos os outros personagens haviam ficado para trás e não mais volveria a vê-los.
Apenas com a ajuda de Sartre é que foi possível aliviar-se desse escuro, pois lembrou-se dos ensinamentos do filósofo e acalmou-se constatando que, de fato, estamos condenados a ser livres. Pelo olhar do outro é que reconhecemos a nós mesmos, com erros e acertos, expondo nossas fraquezas na convivência, mesmo que curta.
Assim, narrou novamente alguns atos e fechou a peça com suas imperfeições, aceitando suas fraquezas e rechaçando qualquer possibilidade de exibi-las novamente, no conforto da doce mentira de ter aprendido a lição, pela quarta ou quinta vez.

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