Os ovos

Segunda-feira, meio dia. O sol estancava-se feito sangue no céu, enquanto o ar seco mesclava as cores do dia amarelado com a sujeira ramerrame do centro. Na escadaria da igreja principal, os mendigos se esticavam após o almoço de migalhas, uns rindo, outros agonizando. Verdadeira fotografia do cotidiano em seu mais genuíno aspecto.
Desviava dos vendedores ambulantes, que se jogavam aos pedestres, tentando lhes empurrar qualquer bugiganga. Passou por uma senhora, de uns setenta e pouco anos, que lhe deu um sorriso e uma piscadela de olhos. Quis rir em retribuição à pobre velha, mas suas feições entristecidas não conseguiram demonstrar nenhuma reação. Sentiu-se mal pelo descaso que involuntariamente transmitiu. 
Era de se culpar por qualquer besteira e naqueles últimos tempos vinha se culpando por tudo, desde a planta que deixou morrer na sua casa por esquecer de regar, até o jogo que não assistiu com a camisa de sempre e seu time perdeu. Nunca acreditara em sorte, mas se fosse para lhe desfavorecer, certamente invocaria o azar, a despeito de seu ceticismo contundente. 
Sabia que era só uma fase e sentia-se como aqueles sujeitos ranzinzas e hipocondríacos que fazem amizade com o mau humor e, ao fim de cada par de meses, ganham uma nova ruga na testa e um punhado a mais de fios brancos. 
Enxergava a vida e os relacionamentos como um grande caos, explosões biológicas jogadas aleatoriamente, em que qualquer sucesso era resultado de uma adaptação pautada em conveniência e resiliência. Conveniência porque era mais fácil assim, viver o que a vida propunha e meritar-se disto. Resiliência porque ceder-se à pressão significaria sucumbir. E, por mais que tudo parecesse não ter sentido algum, todos aparentavam gostar de viver, sabe-se lá porquê. 
Ainda assim, tipicamente freudiano, viveu muitos amores, jogou-se de braços abertos ao encontro de diversas mulheres, uma de cada vez, sempre intenso. Tão aberto ao exagero que quando começava um novo amor, afastava seu ateísmo para acreditar em uma espécie de energia que sequer sabia justificar, tão somente para defender que algo de especial lhe escolhera, que algum encontro fora propiciado sem as forjas sociais, embalado por algum impulso natural e próprio.
Contudo, costumava dizer que o amor se desvanece e, assim, dava fim aos relacionamentos ou, contrariado, via seu fim chegar. Sem muita demora, tratava de se recompor, após certo tempo dedicado ao sofrimento que entendia ser perfeitamente válido e justo, como uma homenagem que se presta a quem parte para viver outro caminho, deixando um pouco do seu mundo e levando um pouco daquele que fica.
Enquanto seguia atravessando o centro da cidade, aquela voz ainda ecoava em sua cabeça: "Você diz que sabe perder, mas não adianta só fingir que saiu do jogo e continuar jogando em segredo até ganhar."
A verdade era que não sabia mesmo perder. Sempre detestou se dar como vencido e, inclusive por isso, é que agia como se nada lhe incomodasse, de modo a não evidenciar que houve derrota. Por vezes, até desistia quando via que estava prestes a ser ultrapassado no controle das rodadas, evitando que mais à frente fosse derrubado. 
Fato é que, desta vez, tudo lhe voltava à memória, como se não houvesse ainda acabado, como se um mundo ainda pudesse ser explorado, não fosse seu orgulho de pedra. De outro lado, a razão lhe gritava que tudo era construção momentânea, logo passaria, mostrando que o certo era mesmo não ter ficado.
Ouviu uma forte buzina e, assustado, se deu conta de que quase havia sido atropelado por um ônibus que cruzava na diagonal, lambendo as ruas da cidade. Encostou-se na parede para se recuperar do susto e percebeu o quão longe estava em seus pensamentos, imaginando o que diria numa situação hipotética criada em seu imaginário para eventual encontro com ela, sob circunstâncias ilusórias, distantes da realidade. Ela havia ido embora para não mais voltar. Puniu-se, dando um murro na parede que encostara: "Raios, pare com estes delírios!".
Limpou o suor de sua testa, deixando lá estampada a poeira do concreto que havia socado e retomou a caminhada ardilosa até em casa, com as flores já murchas que não entregou.
Fora sua culpa? Talvez tenha sido. Talvez tenha guiado a relação neste sentido, talvez tenha transparecido descaso quando queria demonstrar amor e, talvez, muito talvez, tenha se entregado demais quando deveria retrair-se. Eram tão absurdas suas divagações que alternava entre ter se aberto muito ou ter se aberto pouco. Verdade é que vivenciava justamente o meio termo. Sem errar. Seguia bem. Cumpria seu papel. Logo se lembrou: "O amor se desvanece, Luiz. Só isso."
Jogou as flores no lixo e, levantando o rosto, viu uma moça que, de longe, ria da sua situação. Era o ciclo que se reiniciava. Sorriu-lhe de volta desconcertado, lembrando-se daquela passagem de Annie Hall: 

"Eu lembrei daquela velha piada, sabe? O cara vai ao psiquiatra e diz 'Acho que o meu irmão enlouqueceu, ele pensa que é uma galinha, doutor'. 'Por que você não o interna?' perguntou o médico. E o cara responde 'Eu o internaria, mas eu preciso dos ovos.' Então eu acho que é mais ou menos assim que vejo os relacionamentos, eles são totalmente irracionais, loucos, absurdos, mas a gente continua tentando porque precisa dos ovos." Woody Allen, em Annie Hall (Noivo Neurótico, Noiva Nervosa - 1977)

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