Fluxo vespertino

Tardes são movidas por um fluxo (peço-lhes licença para uso de um neologismo) inconceituável.
Pode-se delas dizer um espaço de tempo que se estende do fim da manhã até o início da noite, em que o sol está (ou não) no céu e cujo tempo passa (ou não) lentamente. E são tomadas por um marasmo incômodo, para alguns, ou por uma correria esgotante, para outros.
Para mim, como já era de se esperar, vez que, por natureza, defino-me instável, nunca houve posicionamento claro no que tange à qual tipo de tarde gozam meus dias.
Assim, deixo de lado esta análise que, em suma, nada acrescentará. E passo, pois, a tentar entender, não mais em abstrato, certa tarde concreta que me ocorrera. Não posso dizê-la atípica por não ter tardes típicas a me referenciarem, mas, adianto-lhes que esta em muito se diferenciou de todas as demais, por ter o decurso do tempo sido híbrido.
O ponteiro do relógio vagarosamente ia se arrastando, e, por vezes, ainda que ciente da recente troca de pilhas feita por Michel, eu chegava a pensar que estava parado. Optava por deixar de encará-lo, mas, árdua era tal tarefa, vez que a vazia e clara parede à minha frente me mostrava apenas este círculo antigo e metálico, como se gritasse meu nome e atraísse meus olhos.
Mas, isso já acontecera antes. E da última vez, lembro-me que, após tentativas frustradas de desviar o olhar para a mesa de Raquel, saí cinco minutos mais cedo e me expliquei no dia seguinte, usando daquela velha enxaqueca que, quando solicitada, me atacava.
Raquel me doía ainda mais aos olhos. Parecia uma boneca falante. Não por sua beleza. Raquel em nada era bonita. E sim, por estar sempre preocupada com a própria aparência, conferindo-se no espelho a cada par de minutos, fazendo as sobrancelhas ou lixando as unhas, retocando a maquiagem ou, quando muito, lendo revistas sensacionalistas. Claro que Manuel não a despedia apenas pelos serviços sexuais que por ela lhes eram prestados.
Também não se cogitava desviar os olhos à mesa de Michel, que era próxima por demais da mesa de Jean.
Desta vez não faltavam meros minutos para que aquele sedentário e inútil ponteiro alcançasse o número 6. Ele ainda estava rastejando na casa do 2 e, tomado pelo ar quente, seco e parado de toda a repartição, deixava a impressão de ser um doente em uma fila de hospital público ou um velho a cruzar o deserto com seu camelo já sedento.
O olhar de Jean cobrindo meu corpo inteiro fazia com que eu desejasse ser invisível. Não bastasse continuarmos trabalhando na mesma sala após o ocorrido, eu ainda tinha que aguentar o peso de seus olhos me fitando fixamente e compulsivamente.
Louco. Louco é o que ele era. Na verdade, louca é o que eu era. Como pude acreditar que Jean pensaria em trabalho após as 18 horas? Burra.
Raquel parecia não notar que aquele insano não tirava os olhos de mim. Olhos sujos.
Michel, concentrado no trabalho, lendo processos e mais processos parecia longe dali.
E eu, sem serviço para fazer há mais de duas semanas, por culpa, é claro, de Jean, não tinha opção a não ser esperar o tempo se consumir para que eu pudesse correr para a casa.
A única coisa capaz de tornar melhor tardes como esta é aquela tradicional bebida preta e quente, adoçada levemente, cheirosa de longe, pomposa de perto. Levantei-me para pegar um cafezinho, arrependendo-me no exato momento em que o fiz. Merda! Já estava Jean a contornar meu corpo com seu olhar. Olhar que me enoja.
Sentei rapidamente de volta e não consegui tomar o café, Jean acompanhava cada movimento que eu fazia. Sentia-me travada.
Houve um momento em que pensei em jogar aquela xícara fervendo em sua cara. Não passaria de mera imaginação se não fosse pelo fluxo que me tomara.
Algo, tipicamente vespertino, profundamente depressivo e paradoxalmente revolucionário, fez com que eu praticasse cena vista em certo filme uma semana antes. Não toquei a xícara de café, mas tão somente a mesa, fazendo com que ela e tudo mais que estivesse ali voasse à minha esquerda, atingindo Jean e o nojento espaço que o circulava.
Levantei-me novamente, desta vez, sem sentir o peso de seus olhos em meu traseiro, e fui-me embora.
Ao chegar em casa, bem mais cedo que de costume, ter-se-ia todo o tempo vespertino para desfrutar. Pude, enfim, preparar-me um café. Logo em seguida dediquei certo tempo a um merecido banho e, ao sair, fui tomada de assalto quando, checando como iam aqueles ponteiros preguiçosos do relógio, verifiquei que já se passava da casa de número 7.
Se o tempo é louco, saberei ser mais. Atrasei o ponteiro, voltando-o ao número 3. E pude gozar de uma tarde digna, a despeito da lua no céu.

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