Buraco
O dia seguia ameno, as cores frias mesclavam-se ao ar denso, deixando a sensação de estarmos vivendo mais uma tarde que não seria lembrada e, se eventualmente fosse, faríamos questão de esquecê-la novamente.
Os caminhos estavam bem delineados no trilho, seguíamos feito máquinas bem programadas, personificando aquelas que a Revolução Industrial nos deixou de herança. Normal. Acostumamos a usar coleiras e já não nos sentíamos revoltados pelo puxão que, vez ou outra, poderia ser mais forte.
O descaso se estampava em nossas caras que, cansadas pelo desgosto, já não manifestavam muitas contradições. Sabíamos que os reis e rainhas do baralho eram como nossos donos – sim, fomos feitos números ao longo dos séculos sem que nos déssemos conta – e por isso, poderiam nos conduzir como bem quisessem, do contrário, padeceríamos às mazelas mundanas.
De toda a multidão, às vezes um ou outro se destacava. Os curingas. E logo hão de pensar que pelo trabalho bem prestado, o que não poderia ser mais enganoso. O destaque, na verdade, era marcado pela sagacidade atroz, envergada em seres apodrecidos, despidos de valores, cujas vestes cobriam apenas ossos, carne e sede, sede de ruindade, sede de degustar o desprazer alheio e de se enamorar ao assistir alguma peça cair, feito verdadeiro jogo de cartas, em que a graça para alguns é apenas puxar o valete que segura a pirâmide engenhosamente montada com o cuidado de alguns dedos dedicados que ali brincaram em inocência.
Como oportunistas prontos para o bote que são, nos colocavam como degraus, propiciando a escalada sanguessuga meticulosamente exercida em passos largos e em tempo curto. Para aguçar a diversão, dentadas venenosas eram direcionadas às veias mais expostas de seus infelizes alvos, incitando a cólera que jamais poderia ser trazida à tona.
Por onde passavam, éramos obrigados a encara-los com destoante naturalidade, cedendo tímidos acenos e sorrisos amarelos, no único momento em que mostrávamos os dentes, tristemente apenas para fingir contentamento. Quando éramos chamados, mostrávamos presteza e, feito bicho que gosta de apanhar, abaixávamos a cabeça para que escarrassem destroços de palavras porcamente escolhidas.
Como se houvéssemos passado um par de anos naquela tarde, finalizamos a jornada de 12 horas e regressamos aos abrigos montados na beira da lagoa, turva pela poluição das fábricas. Contamos, como de costume, em quantos estávamos e, novamente, um valete a menos. O baralho naquela noite seria jogado em homenagem a mais uma carta perdida, comida pelos famintos olhos invejosos que lhe rodeavam naqueles últimos tempos.
A noite, de aspecto acinzentado, era a paz pelo fim e a angústia pelo começo, a ambivalência medida em desespero, a esperança que nasce e morre no mesmo instante e o dealer que daria as cartas do dia seguinte.
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